Sobre Desenho

Achei uma xerox de uma página de livro que Elke Coelho, minha professora de desenho durante a graduação, nos separou para fazermos um exercício. Curiosamente, o trecho que achei entre minhas coisas era para a Erika, uma amiga e colega de classe. Não tenho ideia do motivo de estar no meio das minhas coisas mas, naquela época, eram muitas as vezes que trocávamos materiais, textos, favores, então não me surpreende. Do trecho, só lembro que era de um livro do Nuno Ramos mas procurei e ainda não descobri de que livro foi retirado.

Página dupla de um livro escaneado com um texto destacado onde pode-se ler o seguinte trecho: "Mas, sobretudo, o que me cativa na questão do desenho é esta suspeita de que o desenho seja a mais ancestral relação que uma pessoa pode ter com a representação e, se ela permanece, como uma companheira da vida de alegrias tão infinitas quanto minimalistas ao mesmo tempo, o que ela tem a nos dizer? Penso no desenho analogamente a questão da língua: se um dia cheguei a ordem das palavras e me tornei humano - o que significa nunca mais poder sair da ordem da linguagem —, o que terá acontecido com os traços um dia encontrados, onde terá ido parar a ordem do traçar, se os perdi de vista há tanto tempo? O que será o meu traço? Uma reminiscência? Posso acessá-lo por algum artificio da memória? Certamente, todos ficamos na ordem da língua. Seria o desenho uma língua não adquirida? Seria o desenho uma língua perdida ou tão simplesmente substituível pela língua das palavras? Ou seriam as palavras só o que restou do desenho? O que restou do desenho? Se assumo que há algo de coletivo, de partilhável no desenho, se chego a assumir que ele é político (por ser justamente particular), se o comparo com palavras que usamos no campo coletivo, tenho, no entanto, que considerar que a histérica evasão do desenho — o fato de que todos tenhamos um dia desenhado e a maioria de nós não continuou desenhando — o coloca, ainda que pela via negativa, como uma forma de expressão sofisticada em relação a uma cultura que, funcionando na ordem das palavras, tende a banalizá-lo. Com a palavra “sofisticado” quero expressar que o desenho, em um mundo em que predomina o logos da palavra, tornou-se expressividade complexa, justamente ao ter sido suplantado pelas palavras. Deste modo, pelo recalque é que a linguagem pode se tornar expressão. Assim como, na literatura, posso dizer que escrevo porque em algum ponto da minha condição existencial eu não pude falar. Quero dizer com isso que o desenho torna-se arte porque também ele advém do silêncio. Diante disso tudo, qual o presente e o futuro desta forma expressiva" Na página podem-ser vistas algumas setas e pequena marcações feitas a caneta esferográfica preta e azul, mostrando o início dos trechos mais importantes para o exercício

Achei depois, indo mais a fundo na bagunça, o envelope que Elke reservou para mim, junto com um trecho do mesmo texto.

mesmo texto da imagem anterior, porém as marcações no textos se diferenciam um pouco por conta do traçar espontâneo

O texto é o mesmo e os trechos destacados também. Mas curioso perceber as intervenções feitas na folha. Traços, setas, texturas diferentes da caneta. Acho que esse é o tipo de coisa que Elke nos fazia reparar e pensar sobre. Minúcias que parecem pouco importantes mas, revelam tanto. No meu caso, principalmente lembranças de aulas, de falas e de presença. Coisas que absorvi naquele período de tempo e que ressoam em mim até hoje. Algumas dessas coisas e este próprio texto de Nuno, me fazem pensar sobre a minha relação com o desenho. Apesar da presença constante no dia a dia e no meu trabalho, uma relação bastante conflituosa.

Mas por hoje é apenas este trecho que deixo.